segunda-feira, 22 de julho de 2013

Um rio


“As lembranças me surgem velozes como nuvens. Recordo aquela vez em que Sabão se encomendou de uma expedição: queria subir o rio até a nascente. Ele desejava decifrar os primórdios da água, ali onde a gota engravida e começa a missanguear o rio. Juca Sabão muniu-se de mantimentos e encheu a canoa com os mais estranhos e desnecessários acessórios, desde bandeiras a cornetas. Demorou umas tantas semanas. Regressou e fui o primeiro a recebê-lo, nas escadas do cais. Olhou-me, cansado, e disse:

            - O rio é como o tempo!

            Nunca houve princípio, concluía.  O primeiro dia surgiu quando o tempo já há muito se havia estreado. Do mesmo modo, é mentira haver fonte do rio. A nascente é já o vigente rio, a água em flagrante exercício.

            - O rio é uma cobra que tem a boca na chuva e a cauda no mar.

Mia Couto
Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra

 

Um rio

            Cada mulher, cada homem é um rio. Eu, portanto, sou um rio. Um rio que se iniciou antes mesmo de mim e segue, entre curvas e declives, para o seu fim/recomeço inexorável, onde todos os rios terminam: o mar.

            Mas o rio não é só o mar que ele se torna, mas também a fonte que o origina, o caminho que percorre (contornando e transbordando obstáculos), os afluentes que o preenchem e o impulsiona a seguir em frente.

            O rio da minha vida é cheio de afluentes: família, amigos, trabalho, militância, estudos são algumas das correntes de água que confluem para a minha vida-rio. Mas não sou nenhum destes afluentes, sou o rio e neste rio as águas estão juntas e misturadas, não dá para separar as gotas de cada afluente, não dá para separar as jornadas da nossa vida.

            Eu sou este rio que corre. Sou um pai que prepara as aulas enquanto seu filho dorme, sou um professor que aproveita uma brecha em sala para conversar com um aluno sobre o ensino religioso na escola, sou um pesquisador que escuta as entrevistas que fez enquanto segue para a assembleia de professores, um militante que sai no meio do ato de greve para chegar a tempo no CESPEB, um estudante que assiste as aulas da pós graduação enquanto manda mensagens para saber se a febre do filho baixou.

            Às vezes os afluentes são intensos demais. O rio não se contém nas margens que o oprime. Sou rio, sou humano, não dou conta, transbordo. E, neste caos, minhas margens se tornam mais férteis, nascem árvores, frutos e folhas que tornam o rio da minha vida ainda mais vivo. Livros, artigos, conversas inesperadas, encontros planejados, laços de militância, são alguns dos frutos que chovem em mim.

            O rio da minha vida não tem deltas, não se compartimenta, mas se transforma. Está em eterna e incompleta construção. Mergulho em mim mesmo e percebo: não sou aquele rio que começou a jornada. Sou outro. Minha água me mantém vivo, mas não mata a minha sede. Sigo transbordando pedras e contornando montanhas. Desaguo no amanhã.