“As lembranças me surgem velozes
como nuvens. Recordo aquela vez em que Sabão se encomendou de uma expedição:
queria subir o rio até a nascente. Ele desejava decifrar os primórdios da água,
ali onde a gota engravida e começa a missanguear o rio. Juca Sabão muniu-se de
mantimentos e encheu a canoa com os mais estranhos e desnecessários acessórios,
desde bandeiras a cornetas. Demorou umas tantas semanas. Regressou e fui o
primeiro a recebê-lo, nas escadas do cais. Olhou-me, cansado, e disse:
- O rio é como o tempo!
Nunca
houve princípio, concluía. O primeiro
dia surgiu quando o tempo já há muito se havia estreado. Do mesmo modo, é
mentira haver fonte do rio. A nascente é já o vigente rio, a água em flagrante
exercício.
- O rio é uma cobra
que tem a boca na chuva e a cauda no mar.”
Mia Couto
Um rio chamado tempo,
uma casa chamada terra
Um rio
Cada mulher, cada homem é um rio.
Eu, portanto, sou um rio. Um rio que se iniciou antes mesmo de mim e segue,
entre curvas e declives, para o seu fim/recomeço inexorável, onde todos os rios
terminam: o mar.
Mas o rio não é só o mar que ele se
torna, mas também a fonte que o origina, o caminho que percorre (contornando e
transbordando obstáculos), os afluentes que o preenchem e o impulsiona a seguir
em frente.
O rio da minha vida é cheio de
afluentes: família, amigos, trabalho, militância, estudos são algumas das
correntes de água que confluem para a minha vida-rio. Mas não sou nenhum destes
afluentes, sou o rio e neste rio as águas estão juntas e misturadas, não dá para
separar as gotas de cada afluente, não dá para separar as jornadas da nossa
vida.
Eu sou este rio que corre. Sou um
pai que prepara as aulas enquanto seu filho dorme, sou um professor que
aproveita uma brecha em sala para conversar com um aluno sobre o ensino
religioso na escola, sou um pesquisador que escuta as entrevistas que fez enquanto
segue para a assembleia de professores, um militante que sai no meio do ato de
greve para chegar a tempo no CESPEB, um estudante que assiste as aulas da pós
graduação enquanto manda mensagens para saber se a febre do filho baixou.
Às vezes os afluentes são intensos
demais. O rio não se contém nas margens que o oprime. Sou rio, sou humano, não
dou conta, transbordo. E, neste caos, minhas margens se tornam mais férteis,
nascem árvores, frutos e folhas que tornam o rio da minha vida ainda mais vivo.
Livros, artigos, conversas inesperadas, encontros planejados, laços de
militância, são alguns dos frutos que chovem em mim.
O rio da minha vida não tem deltas,
não se compartimenta, mas se transforma. Está em eterna e incompleta
construção. Mergulho em mim mesmo e percebo: não sou aquele rio que começou a
jornada. Sou outro. Minha água me mantém vivo, mas não mata a minha sede. Sigo
transbordando pedras e contornando montanhas. Desaguo no amanhã.