quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Receita de ano novo

Quem me conhece, provalvelmente conhece o poema de Drummond abaixo. De qualquer forma, vale relê-lo sempre, ainda mais nesta época do ano

Receita de ano novo

Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanhe,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)

Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de Janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.


Carlos Drummond de Andrade

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Ao encontro de Eric

Mais um apaixonante e apaixonado texto da Carla, minha namorada. O texto pode ser apreciado mesmo por quem não viu o filme "A procura de Eric" e por quem não é tricolor. Observe que o texto foi escrito antes da última rodada do campeonato brasileiro deste ano:


Ao encontro de Eric

Sábado, dia 28 de novembro, saímos eu e meu companheiro para, enfim, assistirmos ao novo filme do diretor Ken Loach, ‘À procura de Eric’. Há algumas semanas nos programávamos, mas algo desandava. No último sábado, tudo certo.
O filme conta a história de um carteiro que anda com a vida em frangalhos. Eric enfrenta vários problemas em casa, com os filhos, e, por outro lado, uma história mal resolvida do seu passado ressurge, revirando sua consciência e seu coração. Em seus momentos de desesperança, o carteiro Eric passa a se encontrar com outro Eric – a figura de Eric Cantona, grande ídolo e ex-jogador do Manchester United, de um passado não tão remoto. Cantona aparece para Eric como um amigo, alguém próximo, e a partir desses encontros e das conversas que os dois travam ao longo da narrativa, o carteiro inicia um processo de transformação.
O principal personagem ama o futebol. Suas últimas lembranças de momentos felizes estão guardadas na memória de uma partida, nos gols de Cantona, na vitória consagradora de seu time. Pois é partindo dessas doces lembranças que Eric se levanta e, em seus encontros com o ídolo Cantona, passa a se reconhecer como um sujeito ativo de sua própria vida.
Vou comentar algumas coisas que, em minha opinião, tornam este filme imperdível. Em primeiro lugar, gosto da maneira como Ken Loach constrói os seus personagens. Ele não põe o foco em apenas um aspecto da vida de Eric. O carteiro se relaciona e enfrenta diversas frentes: a ex-mulher, os filhos, os amigos e companheiros de trabalho e o novo (velho...) companheiro Cantona. O carteiro de Ken Loach é tudo isso junto e ao mesmo tempo. Cada uma de suas frentes coloca para ele novos desafios, os quais ele vai vivenciando em conjunto.
Assim é como se passam as coisas na nossa vida. Nossas relações estão integradas, por mais fragmentadas que possam parecer. A tentativa de mostrar a conexão entre as partes da vida é algo necessário, sobretudo porque vivemos numa época em que somos indivíduos cada vez mais alienados e apartados da compreensão do todo no qual nos inserimos.
Outro ponto alto do filme, recorrente em outros trabalhos do cineasta, é que a solução encontrada para os conflitos não se deve apenas à ação individual. A solução, ou melhor, o desfecho, sempre requer algum grau de mobilização coletiva dos personagens que compõem a narrativa. É belo perceber como a superação dos problemas demanda uma construção coletiva que mobiliza uma série de identidades e, nos filmes de Ken Loach, especialmente da identidade de classe.
Por fim, como desdobramento do que apontei antes, chamo a atenção para a visão otimista que encerra o filme. A história mergulha nos problemas e nas contradições de Eric com humor e com uma mensagem de esperança. “Sempre há novas possibilidades, sempre há alternativas” é o que diz Cantona. Em tempos de tamanha desesperança, Ken Loach afirma que há possibilidades e que elas, necessariamente, se constroem no coletivo. Assim, ele o faz. Produzindo encanto em tempos de desencanto.
Voltamos para casa, após algumas cervejas, com o coração emocionado pelo filme. No dia seguinte, tudo preparado para ir ao Maracanã em dia de Fluminense x Vitória. O Fluminense, clube do coração, vinha sendo até então o time do desencanto e da total descrença neste ano de 2009. Porém, eis que já no apagar das luzes, no último momento em que ainda era possível iniciar uma reação, o time se levanta e começa a funcionar. E vai ganhando daqui e dali, e vai encantando a sua torcida apaixonada; que por sua vez retribui multiplicando o encanto a partir das arquibancadas.
Então, lá estávamos nós para mais um capítulo desta reação. Se conseguiremos ou não, quem poderá dizer? Éramos um time em frangalhos, mas nos tornamos confiantes e, atuando em coletivo, estamos tentando mudar nossa própria história e sair de um caminho que nos parecia sem volta. Quem sabe se Eric Cantona não andou se encontrando conosco por aí...
Pois antes de entrar no Maracanã, neste último domingo, ainda embalada pela emoção do filme, eu mentalizei o Cantona – aquele mesmo do filme e não apenas o jogador de outrora. Pedi suas bênçãos. Fizemos um bom jogo e ganhamos, seguindo em frente sem esmorecer, na luta para evitar a queda do time para a segunda divisão.
Qual não foi a minha surpresa ao ler, no jornal do dia seguinte, que torcedores ingleses da cidade de Manchester estiveram no Maracanã e se surpreenderam com a festa feita por lá. “– Foi lindo, nunca vi isso. Decidimos vir ao jogo depois que um amigo esteve no aeroporto na quinta-feira e viu a festa que fizeram para receber o time – declarou Douglas Smith, de Manchester.” Assim li no jornal e pensei, então, nas coincidências meio mágicas que, às vezes, vislumbramos só no futebol...
Depois de uma reação improvável, agora chegou a hora em que nos falta apenas mais uma partida a ganhar. Que o encanto e a esperança continuem conosco. E que Eric Cantona apareça para nós no domingo!
Rio, 1º de dezembro de 2009

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Bem acompanhado

Sou um privilegiado. Estou cercado por pessoas que pensam e refletem sobre o mundo a sua volta. Aqui vai um texto da minha mãe, professora, sobre o seu trabalho:


Reflexões de uma professora da Rede Pública de Ensino
Por: Jana Eiras Castanheira

De tempos em tempos podemos verificar a ocorrência de algumas tentativas contundentes de desqualificar o professor, seja por parte de alguns setores da mídia, seja por parte de nossas “autoridades”.
Ultimamente, temos observado algumas conversas com o intuito de se mexer em uma conquista histórica da categoria, que é a aposentadoria aos 25 anos para as professoras e aos 30 para os professores. Vale lembrar que esse direito adquirido não é nenhuma “generosidade”. Trata-se, na verdade, de uma maneira de se pagar aos professores vários adicionais a que teríamos direito.
Vejamos: adicional de insalubridade – que vai do piolho às doenças infecto-contagiosas; adicional de periculosidade – basta abrirmos os jornais pra vermos, volta e meia, algum colega agredido e/ou ameaçado por um aluno e, finalmente, adicional de penosidade. Existe!!! E quem recebe são aqueles profissionais cujas funções são penosas, como, por exemplo, o ascensorista, que passa o dia inteiro dentro de um elevador, subindo e descendo, subindo e descendo... sem chegar a lugar nenhum. (Qualquer semelhança com professores atendendo a alunos completamente incapazes de acompanhar o programa graças a anos e anos de políticas públicas equivocadas não é mera coincidência).
Enfim, como não se queria pagar esses adicionais todos de uma forma direta, foram feitas contas e, matematicamente (como gostam de falar os locutores esportivos), diminuiu-se cinco anos da data de aposentadoria da categoria. Portanto, não é nenhum privilégio.
Estou recordando essa história porque ouvi hoje, numa reunião na escola estadual, que o professor que trabalha no horário noturno tem uma hora aula de 40 minutos enquanto nos turnos da manhã e tarde a hora aula é de 50 minutos. Portanto, estaríamos ganhando a mesma coisa que nossos colegas que trabalham de dia com uma carga horária menor.
Ora! Todo profissional que trabalha no turno da noite tem, por lei, um adicional noturno. (O do porteiro do meu prédio, por exemplo, é de 40% a hora. É acordo sindical. Paga-se e pronto. Doa a quem doer!).
Estou cansada de ver o professor tratado como um monstro intransigente que não dá sua cota de sacrifício (mais???) para o bem da educação. Estou desconfiada que isso vem desde a forma de tratar as professoras das séries iniciais de “tias”. Pronto! Virou parente! (Eu, particularmente, conheço poucas relações tão desrespeitosas quanto as relações familiares. No calor da discussão, diz-se a um ente querido coisas que não diríamos ao nosso pior inimigo - quanto menor a intimidade, maior a cerimônia)
Logo, queridos, vamos parar com isso! Fazemos nosso trabalho direito. Com amor, com tesão. Muitas vezes em escolas onde falta tudo, da água ao material didático. Trabalhamos debaixo de um calor infernal, trabalhamos quando falta luz, improvisamos salas de aula ao ar livre, ensinamos regras básicas de educação, de higiene e de convívio social. Assumimos, cada vez mais, papéis que antes eram desempenhados pela família.
Mas, acima de tudo, somos profissionais, queremos ser respeitados e, de preferência, bem remunerados.