sábado, 10 de dezembro de 2011

O Homem que via o diabo

“Livrai-nos de todo mal, amém”. Estas foram as últimas palavras de João antes de dormir, as mesmas que ele rezava há décadas. Suas preces seriam atendidas.

Após um sono agitado, João acordou atrasado para o trabalho e com muita dor de cabeça. Ainda estava na cama quando ouviu uma voz, quase um sussurro: “hoje você verá o Diabo onde ele realmente está”.

Abriu os olhos assustado e procurou o dono da voz, mas, temente a Deus, rapidamente compreendeu que Ele lhe havia falado. Ficou emocionado, confuso, excitado e, principalmente, se sentiu recompensado. Afinal, não havia dúvida de que os anos de retidão, fidelidade absoluta a Deus e fé inabalável o tornaram digno de receber este dom.

Mas João estava atrasado e revelações religiosas não impediriam o patrão de descontar o seu salário. Botou uma roupa e saiu correndo, sem ao menos lavar o rosto. No caminho, ele pensava, entre curioso e assustado: “onde, como, quando eu verei a ação do tinhoso?”.

No ônibus lotado e quente um homem alto e forte se aproximava de João quando ele viu o Diabo pela primeira vez. Satanás estava tatuado nas mãos, no rosto e em toda a pele escura daquele homem. João saiu do ônibus muito antes do seu ponto, escapando assim do assalto iminente. A condução seguinte demorou um pouco.

Cada vez mais atrasado, estava apertando o passo quando um obstáculo apareceu na sua frente: um mendigo sujo, fedido e maltrapilho pedia alguma coisa a João, que não entendeu nem fez questão de entender o que ele disse. Olhou de relance para o pedinte e viu cordas demoníacas saindo dele e sendo controladas pelo demônio. Aquele mendigo, coitado, estava possuído, era um mero títere de satanás. Afastou-se daquele condenado.

Chegou, finalmente, no escritório. Após levar o esporro regulamentar pelo atraso, João foi tomar um cafezinho para reordenar as ideias. Um colega fazia o mesmo enquanto devorava com os olhos a nova funcionária. Como quem conta um segredo, o colega cochichou: “olha a roupa com que ela vem trabalhar, olha o jeitinho de piranha, essa daí vai passar na mão de todo mundo”. João não conseguia prestar atenção no colega, pois via o diabo se esfregando nos quadris da funcionária. Decidiu ir trabalhar para tirar aquela imagem da cabeça, afinal, “mente vazia é oficina do cão”.

Trabalhava freneticamente para desfazer a má impressão deixada pelo seu atraso quando foi interrompido por outro colega. Ele queria convidá-lo para uma assembleia onde os funcionários se organizariam para exigir melhores salários e condições de trabalho. Tudo que João não queria era ser visto com aquele desordeiro, ainda mais agora que via o diabo, vestido de terno e gravata, controlando a sua fala. “Eu sabia, essa revolta toda tem motivação política, esse cara quer se dar bem às minhas custas!”, João continuou fingindo que ouvia o sujeito até conseguir dispensá-lo com toda a educação.

Fez serão na hora em que a assembleia estava marcada para deixar bem claro para o patrão de que lado estava. Depois voltou pra casa exausto e ainda deu o azar de pegar um baita engarrafamento. Estava rolando uma festa na rua que atrapalhava o trânsito de quem, como ele, trabalha muito e não tem tempo para vadiagem. Quando o ônibus passou lentamente pela celebração viu dois homens se beijando e o diabo gozando com a cena. Pensou: “pra que diabos eu tenho que ver essa pouca vergonha? Deus deve ter um plano para mim.”. Neste momento começou a ver o diabo por toda a festa. Ouviu uma batucada e viu o diabo dançando, viu pessoas bebendo e satanás saciando a sua sede. “Como as pessoas podem chamar uma manifestação desta de cultura?” vociferava, enquanto repassava na memória espaços onde o diabo deveria pular, brincar, gozar e se divertir, como rodas de jongo, de capoeira, de funk, terreiros de Candomblé e de Umbanda.

João chegou em casa exausto e sujo, não tivera tempo de tomar banho de manhã. Foi um dia muito cansativo e proveitoso, pois serviu para reafirmar todas as suas certezas. Restava a João responder a uma questão: como combater um diabo que está em tantos lugares? Era melhor pensar nisto no dia seguinte, estava na hora de tomar banho, deitar, rezar e dormir.

Ao lavar o rosto percebeu algo estranho no seu olho. Aproximou-se do espelho até deixa-lo esfumaçado pela sua respiração, só aí conseguiu ver com clareza o pequeno diabo, risonho e debochado, que habitava o seu globo ocular. Ele estava lá o tempo todo e aparecia em tudo que João olhava. Finalmente entendeu onde realmente estava o diabo. Com o susto e a vergonha, ficou cego por alguns minutos, mas começou a enxergar.