Após um sono agitado, João acordou atrasado para o trabalho e com muita dor de cabeça. Ainda estava na cama quando ouviu uma voz, quase um sussurro: “hoje você verá o Diabo onde ele realmente está”.
Abriu os olhos assustado e procurou o dono da voz, mas, temente a Deus, rapidamente compreendeu que Ele lhe havia falado. Ficou emocionado, confuso, excitado e, principalmente, se sentiu recompensado. Afinal, não havia dúvida de que os anos de retidão, fidelidade absoluta a Deus e fé inabalável o tornaram digno de receber este dom.
Mas João estava atrasado e revelações religiosas não impediriam o patrão de descontar o seu salário. Botou uma roupa e saiu correndo, sem ao menos lavar o rosto. No caminho, ele pensava, entre curioso e assustado: “onde, como, quando eu verei a ação do tinhoso?”.
No ônibus lotado e quente um homem alto e forte se aproximava de João quando ele viu o Diabo pela primeira vez. Satanás estava tatuado nas mãos, no rosto e em toda a pele escura daquele homem. João saiu do ônibus muito antes do seu ponto, escapando assim do assalto iminente. A condução seguinte demorou um pouco.
Cada vez mais atrasado, estava apertando o passo quando um obstáculo apareceu na sua frente: um mendigo sujo, fedido e maltrapilho pedia alguma coisa a João, que não entendeu nem fez questão de entender o que ele disse. Olhou de relance para o pedinte e viu cordas demoníacas saindo dele e sendo controladas pelo demônio. Aquele mendigo, coitado, estava possuído, era um mero títere de satanás. Afastou-se daquele condenado.
Chegou, finalmente, no escritório. Após levar o esporro regulamentar pelo atraso, João foi tomar um cafezinho para reordenar as ideias. Um colega fazia o mesmo enquanto devorava com os olhos a nova funcionária. Como quem conta um segredo, o colega cochichou: “olha a roupa com que ela vem trabalhar, olha o jeitinho de piranha, essa daí vai passar na mão de todo mundo”. João não conseguia prestar atenção no colega, pois via o diabo se esfregando nos quadris da funcionária. Decidiu ir trabalhar para tirar aquela imagem da cabeça, afinal, “mente vazia é oficina do cão”.
Trabalhava freneticamente para desfazer a má impressão deixada pelo seu atraso quando foi interrompido por outro colega. Ele queria convidá-lo para uma assembleia onde os funcionários se organizariam para exigir melhores salários e condições de trabalho. Tudo que João não queria era ser visto com aquele desordeiro, ainda mais agora que via o diabo, vestido de terno e gravata, controlando a sua fala. “Eu sabia, essa revolta toda tem motivação política, esse cara quer se dar bem às minhas custas!”, João continuou fingindo que ouvia o sujeito até conseguir dispensá-lo com toda a educação.
Fez serão na hora em que a assembleia estava marcada para deixar bem claro para o patrão de que lado estava. Depois voltou pra casa exausto e ainda deu o azar de pegar um baita engarrafamento. Estava rolando uma festa na rua que atrapalhava o trânsito de quem, como ele, trabalha muito e não tem tempo para vadiagem. Quando o ônibus passou lentamente pela celebração viu dois homens se beijando e o diabo gozando com a cena. Pensou: “pra que diabos eu tenho que ver essa pouca vergonha? Deus deve ter um plano para mim.”. Neste momento começou a ver o diabo por toda a festa. Ouviu uma batucada e viu o diabo dançando, viu pessoas bebendo e satanás saciando a sua sede. “Como as pessoas podem chamar uma manifestação desta de cultura?” vociferava, enquanto repassava na memória espaços onde o diabo deveria pular, brincar, gozar e se divertir, como rodas de jongo, de capoeira, de funk, terreiros de Candomblé e de Umbanda.
João chegou em casa exausto e sujo, não tivera tempo de tomar banho de manhã. Foi um dia muito cansativo e proveitoso, pois serviu para reafirmar todas as suas certezas. Restava a João responder a uma questão: como combater um diabo que está em tantos lugares? Era melhor pensar nisto no dia seguinte, estava na hora de tomar banho, deitar, rezar e dormir.
Ao lavar o rosto percebeu algo estranho no seu olho. Aproximou-se do espelho até deixa-lo esfumaçado pela sua respiração, só aí conseguiu ver com clareza o pequeno diabo, risonho e debochado, que habitava o seu globo ocular. Ele estava lá o tempo todo e aparecia em tudo que João olhava. Finalmente entendeu onde realmente estava o diabo. Com o susto e a vergonha, ficou cego por alguns minutos, mas começou a enxergar.
Um comentário:
Muito bom o texto! Parafraseando o popular "o diabo está no olho de quem vê" ou ainda as escrituras "A candeia do corpo são os olhos; de sorte que, se os teus olhos forem bons, todo o teu corpo terá luz [...] " (Mateus 6:22).
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